Neurociência, desenvolvimento humano e o papel da linguagem nas interações com máquinas.
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Recentemente me deparei com diversas reportagens e artigos circulando na mídia sugerindo que essas expressões de cortesia são desnecessárias, afinal, a Inteligência Artificial (IA) não sente nada, não tem emoções. Seriam palavras vazias, desperdiçando energia, processamento, dinheiro e tempo, já que não mudam o resultado final do processamento da IA quando ela entrega uma resposta.
Com a popularização da inteligência artificial generativa como o ChatGpt, Gemini, Claude e tantas outras, passamos horas conversando e trabalhando com inteligências artificiais. Algumas vezes pedimos que elas escrevam um e-mail, corrijam um programa de computador que estamos criando, resumam um relatório, criem vídeos ou até nos façam rir com uma piada. Muitos profissionais, em diversas áreas do conhecimento humano, passam de 4 a 12 horas por dia envolvidos com algum tipo de IA. Então, alguns especialistas afirmam: é desnecessário escrever "obrigado" ou 'por favor" em seus pedidos (prompts) para a IA.
Mas... será mesmo?
Na P2 Consultoria Brasil, aplicamos a neurociência e o desenvolvimento humano em tudo o que fazemos. Por isso, resolvemos investigar esse tema com um pouco mais de profundidade. Perguntamos para duas IAs, o ChatGPT e o Gemini, e cruzamos as respostas dos dois modelos de IA com estudos da neurociência, da psicologia social e do comportamento. O resultado foi surpreendente.
Ambas as inteligências artificiais concordaram em algo essencial: o “obrigado” e o "por favor" não é para elas. É para você.
Segundo os modelos consultados, manter uma linguagem gentil nas interações com máquinas ajuda a:
A pergunta foi: Algumas matérias publicadas no Brasil afirmam que não devemos dizer "obrigado" ou "por favor" para a IA. Comente sobre isso.
Tema | ChatGPT | Gemini |
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Eficiência | Reconhece o argumento técnico, de que "obrigado" e "por favor" não fazem diferença no prompt ( o que você pede para a IA fazer ou resolver), mas valoriza o simbolismo do gesto educado, mas não para a IA. | Apresenta a falta de eficiência técnica dessas palavras, mas relativiza a importância em favor da experiência do usuário. |
Antropomorfização | Alerta sobre o risco de confusão, mas defende que isso pode ser um espelho do humano em nós. A IA não vai gostar de você por causa do "obrigado" ou "por favor" em seus prompts. | Também explica o risco de criar falsas expectativas emocionais com IAs. A IA não vai te admirar por ser educado. |
Educação digital como prática pessoal | Destaca que agradecer não é para a IA, é para cultivar a presença e a gentileza em nós, seres humanos. | Concorda: diz que a cortesia é uma forma de autocuidado e preservação das habilidades sociais dos humanos e não das máquinas. |
Neuropsicologia e comportamento humano | Destaca implicações sutis: menciona o impacto em como tratamos o mundo. | Explicita: fala da modelagem de comportamento, bem-estar psicológico e diferenciação entre IA e humanos. |
Visão de futuro | Cita especulações poéticas (ex: superinteligências), mas as trata como provocação ética). Tipo, quando a IA evoluir ela vai se lembrar que você a tratou bem ou mal. | Também menciona isso como hipótese remota, mas não descarta o debate como relevante. |
Vou simplificar daqui em diante. Nosso cérebro aprende por repetição. Duvida? pergunte a qualquer "concurseiro", ou estudante de música com seu instrumento, ou atleta de alta performance (nem vou entrar no assunto sobre memória muscular), quantas vezes eles refazem um determinado exercício ou uma determinada leitura? No nosso tema aqui, toda vez que você diz “obrigado” para a IA, você reforça redes neurais associadas à gentileza e à comunicação humana. Isso não é invenção minha ou da minha paixão por tecnologia. Estudos mostram que:
Ser educado ativa circuitos de recompensa emocional.
Uma expressão cortês reduz estresse comunicacional.
O uso constante de linguagem imperativa com máquinas pode afetar o jeito como falamos com pessoas.
Ou seja: praticar educação digital é uma forma de autocuidado e evolução pessoal.
Plasticidade neural e repetição
Quando alguém interage diariamente com sistemas de IA de maneira direta, imperativa (faça, imprima, resuma, altere, ajuste, refaça) e sem cordialidade, esses padrões de comunicação podem se consolidar em redes neurais associadas à comunicação, mesmo fora do ambiente digital.
Estudos de neuroplasticidade, (Doidge, 2007), mostram que "o cérebro molda-se pelos padrões que mais utiliza".
Circuitos emocionais e comunicação empática
Ao usar palavras como “obrigado” e “por favor”, mesmo para máquinas, ativamos os mesmos circuitos que usamos em relações humanas, especialmente os ligados à empatia, respeito e convivência social.
Isso reforça não só a nossa capacidade de relacionamento com os outros, mas também regula o estresse e promove bem-estar emocional.
Sistemas de recompensa e regulação emocional
Expressar gentileza (mesmo com uma IA ou o seu animal de estimação) pode ativar o sistema de dopamina e ocitocina, neurotransmissores ligados à recompensa, vínculo e satisfação.
Ou seja: ser educado com a IA nos faz bem biologicamente, mesmo sabendo que a IA não “sente”.
Eu poderia agora, argumentar com a metafísica um tanto oriental:
Há uma citação do Buda encontrada como: "A mente é tudo. O que você pensa, você se torna." ou "Nós somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com nossos pensamentos. Com nossos pensamentos, fazemos o nosso mundo."
Ou buscar abrigo na metafísica ocidental de Aristóteles: "Nós somos aquilo que fazemos repetidamente. A excelência, então, não é um ato, mas um hábito."
Mas, vamos seguir em frente.
A linguagem molda o mundo. Se a IA pode influenciar algumas normas sociais, que seja para melhor. Quando você opta por tratar uma IA com "educação", está dizendo algo importante sobre você, que seus valores não mudam com o contexto. Algo como: "sou muito educado no verão, mas odeio todo mundo no inverno". Deixemos de fora os exageros. Isso diz também que sua ética não depende de você estar sendo observado. Vai além, informa que você age com integridade até diante de uma tela, no escuro do seu quarto, quando ninguém está olhando. É assim que se constrói um novo ambiente: um ambiente onde a tecnologia possibilita o melhor do lado humano, não o apaga, não o diminui.
Autocultivo de valores
Falar com educação não é sobre a IA, é sobre o ser humano que escolhe continuar praticando seus valores mesmo quando ninguém exige. Isso é um sinal de maturidade no desenvolvimento humano: agir por consciência, e não por obrigação.
Preservação da empatia nas interações humanas
O risco de desumanização cresce quando internalizamos um padrão frio, funcionalista, nas interações com a tecnologia e depois o projetamos nos relacionamentos reais. Manter a educação digital é uma forma de preservar o tecido relacional da humanidade.
Construção da identidade ética
Quando tratamos todos os “interlocutores” com respeito (pessoas, sistemas, animais, ambiente), construímos uma identidade íntegra, coesa, alinhada com o tipo de mundo que desejamos ter.
Sim, e isso é ótimo. A questão é que a IA não está interagindo só com adultos conscientes de seus filtros sociais. Existem adultos sem filtros também. Além disso, as crianças e adolescentes de hoje passarão horas interagindo com sistemas de IA em casa, na escola, nos horários e locais de lazer. Se essas interações forem sempre secas e impessoais, é provável que desenvolvam uma linguagem empobrecida, funcional, mas desprovida de empatia e nuance emocional. Serão, no futuro, como muitos adultos de hoje, cuja habilidade da comunicação é precária. Eles podem transferir o modo "comando", para relações que exigem o modo "conexão", inadvertidamente, sem sentir, sem perceber.
Aliás, essa questão da comunicação cortês com não humanos não é de agora. Conheço muita gente que conversa de forma cordial com objetos inanimados. Particularmente, eu converso com minhas plantas e ativamente com meu casal de cães da raça dachshund, conhecido como "salsichinha". Vou compartilhar o que já pesquisei. Ao contrário da IA, animais (como cães, gatos, etc) são seres sencientes que respondem ativamente ao tom de voz, à linguagem corporal e à intenção, mesmo sem compreender o vocabulário humano.
Estudos recentes, como os que investigam os benefícios emocionais de tutores que interagem ativamente com seus pets, demonstram que essa comunicação vai além da mera troca de informações. O psicólogo Nicholas Epley, aponta que conversar com animais fortalece o vínculo e estimula a cognição humana e a capacidade de comunicação. Outras pesquisas indicam que tutores que conversam com seus pets, tendem a ter maior senso de empatia e inteligência emocional. O Ponto é: a prática de se comunicar de forma cuidadosa e atenta com um animal exercita a empatia em um nível fundamental, exigindo a leitura de sinais não-verbais e o ajuste do próprio comportamento para obter uma resposta positiva. Esse é um treino valioso para as interações humanas.
No mesmo caminho, está a ideia de que conversar com plantas traz benefícios. É um "saber popular" muito antigo e comumente transmitido entre amantes da natureza. A boa notícia é que sim, existem estudos e discussões científicas sobre o tema, embora as conclusões sejam mais nuançadas do que simplesmente "as plantas entendem o que você diz". Mas o que estamos abordando aqui não é sobre se as plantas entendem, mas sim, sobre como você se sente.
A pesquisa científica sobre o efeito da voz humana ou de sons no crescimento e bem-estar das plantas é um campo que tem gerado resultados variados e por vezes controversos, mas que aponta para alguns caminhos interessantes.
Saúde Mental: Esta é a área onde a evidência é mais forte e consistente. Conversar com as plantas está associado a redução de estresse e ansiedade, melhora do humor e aumento do senso de bem-estar. O ato de interagir, mesmo que de forma "unilateral", pode promover uma sensação de conexão, propósito e relaxamento. As plantas não respondem como uma IA, mas as pessoas conversam com elas há séculos.
Em outras palavras:
A ciência não comprova que as plantas e animais entendem as palavras "obrigado" ou "por favor" no sentido humano. No entanto, ela oferece evidências crescentes de que:
A escolha de manter um “por favor” ou um “obrigado” nas conversas com a IA não é sobre ensinar boas maneiras à máquina, nem como melhorar o resultado da sua pergunta ou prompt. É sobre manter viva a capacidade de tratar qualquer interlocutor, real ou virtual, com respeito, clareza e presença.
Essa prática reforça:
Habilidades sociais que impactam diretamente entrevistas de emprego, reuniões e relações humanas.
A fronteira saudável entre o mundo digital e o emocional.
O autocuidado mental, ao escolher um tom mais gentil e humano para interações diárias.
Portanto, quando alguém argumenta que as pessoas devem manter a cortesia ao interagir com a IA, isso deve ser bem entendido, pois, a prática da gentileza e do cuidado na comunicação (mesmo que "unilateral", da perspectiva da máquina, plantas ou animais) é uma habilidade humana que deve ser cultivada ativamente para o desenvolvimento socioemocional e o bem-estar duradouro do próprio indivíduo. E assim, a comunicação empática agradece.
Mas, e as pessoas que acabam se apaixonando pela IA e criam "amantes virtuais" e fazem loucuras por "ele/ela"? E as pessoas que ficam consultando a IA, como se a IA fosse terapeuta, psicólogo ou médico? E as pessoas que não acreditam que a IA pode ajudar no dia-a-dia delas?
Bem, isso é assunto para outro dia. Muito obrigado (se você é uma IA ou não) e até lá.
Paulo Henrique (PH) é embaixador da P2 Consultoria Brasil.
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1. Nicholas Epley é um renomado Professor de Ciência do Comportamento na Booth School of Business da Universidade de Chicago, onde também dirige o Roman Family Center for Decision Research. É um psicólogo social que se dedica ao estudo da cognição social, ou seja, como as pessoas pensam sobre outras pessoas. Sua pesquisa busca entender por que indivíduos inteligentes frequentemente se entendem mal. Epley é autor do livro "Mindwise: How We Understand What Others Think, Believe, Feel, and Want" (ou "Mindwise: Como Entendemos o Que os Outros Pensam, Acreditam, Sentem e Querem"). Entre outros temas, Nicholas Epley estuda o antropomorfismo: a atribuição de características humanas a objetos, animais ou entidades não-humanas. Ele pesquisa como o antropomorfismo pode aumentar a confiança em veículos autônomos ou como as pessoas tratam pets como pessoas.
2. Norman Doidge é um psiquiatra canadense, psicanalista, escritor, ensaísta e poeta. Acadêmico, por cerca de trinta anos foi membro do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Columbia, em Nova York. Atualmente, é membro do corpo docente do Instituto de Psicanálise de Toronto, no Canadá, onde reside. Suas pesquisas se concentram em neuroplasticidade e psicanálise. É autor do best seller "O Cérebro Que Se Transforma: Histórias de Superação Pessoal nas Fronteiras da Ciência do Cérebro" (The Brain That Changes Itself: Stories of Personal Triumph from the Frontiers of Brain Science), publicado em 2007. Este livro explora a capacidade do cérebro de se reorganizar e se adaptar ao longo da vida, desafiando a antiga crença de que o cérebro adulto era fixo e não se expandia.